"Nosso próprio inconformismo com as catástrofes prova que estamos acostumados à ordem." |
De uns tempos pra cá, qualquer pessoa que tenha a intenção de defender a fé cristã tem de inevitavelmente lidar com a questão do sofrimento humano. Isso porque o sofrimento parece inconciliável com a ideia de que existe um Deus que é, ao mesmo tempo, onipotente e bom. Sem dúvida, o enigma do sofrimento é um dos maiores desafios lógicos, filosóficos, teológicos e pastorais com os quais os cristãos precisam lidar. Como a igreja pode responder às questões levantadas pela tragédia? Como a igreja pode responder particularmente àqueles que sofrem? Como a igreja pode perseverar em meio ao próprio sofrimento?
É impossível responder ao sofrimento, sem considerar as três maiores virtudes cristãs: a fé, a esperança e o amor. Elas são a base de tudo na teologia e na tradição cristãs. Se alguém nos perguntasse qual a resposta cristã para o sofrimento humano, teríamos de propor uma tríplice resposta: 1) fé na Palavra de Deus; 2) esperança num futuro sem sofrimento; e 3) amor por Deus e pelos que sofrem.
Fé na Palavra de Deus. Qualquer resposta à questão do sofrimento que não considere de modo amplo e honesto a revelação bíblica é incompleta e equivocada. Não se pode refletir sobre o sofrimento, sem uma "cosmovisão cristã", isto é, sem uma visão de mundo pautada no que a Bíblia diz. Os três conceitos basilares da cosmovisão cristã são: a criação, a queda e a redenção. A Escritura diz que Deus criou todas as coisas. E que ele as criou justas, perfeitas e com propósito. "No princípio Deus criou os céus e a terra (...) e tudo havia ficado muito bom" (Gn 1.1,31). Mesmo os sinais mais eloquentes de desordem no universo não são suficientes para anular as provas incontestáveis de que a ordem existe. Nosso próprio inconformismo com as catástrofes prova que estamos acostumados à ordem. Esperamos a ordem.
Mas a Bíblia não diz só isso. Ela diz que há um problema com o universo. E o problema somos nós. Logo nas primeiras páginas da Escritura, deparamo-nos com o registro da rebelião do homem contra Deus. Em sua busca impensada pela emancipação, o homem separou-se de Deus, passou a viver para si mesmo e colheu os frutos amargos de seu pecado. O capítulo 3 do primeiro livro da Bíblia lista algumas das inevitáveis consequências da separação entre a criatura e o Criador. Desarmonia entre homens e animais, degradação da natureza, relações interpessoais conturbadas, escassez ou dificuldade de acesso aos recursos naturais, males físicos e emocionais e, por fim, a própria morte são alguns dos resultados da queda do homem. Segundo a tradição judaico-cristã há um culpado pelo mal e pelo sofrimento presentes no universo: o homem.
Contudo, a cosmovisão cristã não se resume aos conceitos de Criação e Queda. A esperança dos crentes de todos os tempos e lugares, ao longo de vinte séculos de tradição cristã, repousa sobre uma terceira verdade inabalável: a Redenção. Todos os textos apocalípticos, tanto do Antigo Testamento como do Novo Testamento, apontam para a restauração final e definitiva de todas as coisas. A ordem será restabelecida. Um reino justo e perfeito será inaugurado. A paz, a justiça e a alegria durarão eternamente. Ante esta bendita esperança, Paulo diz que: "Os nossos sofrimentos atuais não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada" (Rm 8.18). Noutra de suas cartas, o apóstolo diz que "nossos sofrimentos leves e momentâneos estão produzindo para nós uma glória eterna que pesa mais do que todos eles" (2Co 4.17).
Esperança num futuro sem sofrimento. No que diz respeito à expectativa de que Deus conserte tudo definitiva e eternamente, o pensamento do apóstolo Paulo está em harmonia com todos os demais autores da Bíblia. Do começo ao fim, a Escritura aponta para a restauração de todas as coisas. O último livro da Bíblia, por exemplo, descreve assim o desfecho da História:
Então vi novos céus e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham passado; e o mar já não existia (...) Ele [Deus] enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem já passou (...) Estou fazendo novas todas as coisas. (Ap 21.1-5)Em suma, o que a Bíblia diz sobre a situação da humanidade, do mundo e do universo é que nossos fracassos não são definitivos. A desordem não será a última palavra a respeito da nossa realidade. A morte não é o fim. Cristo é a nossa "esperança da glória" (Cl 1.27). Não precisamos nos encolher ante o sofrimento presente no mundo. Deus dará pessoalmente um basta a toda forma de mal. Ele enxugará cada lágrima e aliviará toda dor. E ele não fará isso por meio de uma consolação parcial, mas de uma redenção total.
Amor por Deus e pelos que sofrem. No entanto, a verdade é que ainda não vivemos na glória. Temos, portanto, de responder à questão do mal, enquanto vivemos sob as consequências da Queda. Enquanto Deus não conclui a História, temos de expressar de maneira prática nossa fé e nossa esperança cristãs, sobretudo quando estamos diante do sofrimento. E a única resposta cabível para o problema do sofrimento é o amor.
Por que as pessoas sofrem? Não existe uma resposta simples e universal para esta pergunta. Alguns sofrem em consequência de seus próprios pecados ou dos pecados de terceiros. Outros sofrem porque Deus quer chamar-lhes a atenção. Há ainda os que têm o caráter aperfeiçoado pelo sofrimento. Os cristãos podem sofrer de modo disciplinar. Deus pode usar o sofrimento para atrair os descrentes. Enfim, há tantas respostas possíveis, que não temos o direito de ocupar todo o nosso tempo procurando por elas. Temos de fazer alguma coisa enquanto sofremos ou enquanto alguém à nossa volta sofre. A resposta cristã para o sofrimento é o amor. Em primeiro lugar, o amor por Deus - amor a ser preservado, mesmo em meio à dor. Em segundo lugar, o amor por quem sofre. E este amor não consiste em palavras, mas em ações. Deve ser um amor que denuncia o pecado, mas que perdoa. Um amor que socorre, que compartilha, que promove a justiça e que luta contra toda forma de opressão e exploração. Um amor que busca o perdido, reconcilia os inimigos e estende-se sobre os miseráveis. Um amor assim constitui a mais veemente de todas as respostas que podemos oferecer àquelas perguntas que surgem quando acontece uma tragédia.